CRUZÍLIA
- O Princípio
Cruzília é um município de aproximadamente 17 mil habitantes e com grande representatividade na história do Mangalarga e Mangalarga Marchador.
A cidade, localizada no Sul de Minas, é considerada o berço das raças.
Ela foi fundada com o nome de Encruzilhada, pois localiza-se ao lado de um cruzamento formado por duas importantes estradas do período colonial, que ligam São João Del-Rei e Rio de Janeiro a região aurífera.
O município integra o chamado Caminho Velho da Estrada Real, que une Ouro Preto (antiga Vila Rica) ao porto de Paraty.
Esse trajeto, também conhecido como Caminho do Ouro, era a principal rota para se chegar a Minas Gerais.
A direção era também obrigatória para o escoamento do ouro a ser transportado de Paraty para o Rio de Janeiro, onde era embarcado para Portugal.
Os primeiros habitantes que chegaram na região foram os faiscadores de ouro, a maioria deles portugueses, que migraram provavelmente da província de São Paulo. Eles não encontraram o minério em Cruzília.
Para o abastecimento da região aurífera, muitos se fixaram devido a facilidade encontrada para a produção de alimentos oriundos da pecuária e da agricultura.
Com o desenvolvimento dessas atividades, surgia a necessidade cada vez maior de criar meios para o transporte dos cultivos e dos produtos gerados.
Na região não havia rio navegável e o único meio de transporte viável, capaz de vencer as estradas de serras, surradas pelas chuvas e desfiguradas pelos deslizamentos, era uma tropa de cavalos.
O percurso pela Estrada Real era feito pelos imigrantes com cavalos extremamente rústicos: Sorraios, Marismenhos e Garranos trazidos da Europa em Caravelas.
Nesse contexto, começa a se desenvolver a preferência local por animais fortes, ágeis e com marcha diferenciada.
FAZENDA FAVACHO
- A Origem
Documentos relatam que em 28 de abril de 1725 quatro léguas quadradas foram concedidas à Antônio Rodrigues da Fonseca, morador do caminho velho na paragem Angahy, concessão que foi registrada à folha 189 do livro de sesmaria, denominada Favacho e Angahy, lavrada em Vila Rica (atual Ouro Preto) no dia 03 de maio de 1725.
Posteriormente, Antônio Rodrigues a vendeu ao Cap.José Francisco Nunes, que, por sua vez, a vendeu ao Cap.José Vieira de Almeida.
Apesar de ter sido demarcada somente em 15 de outubro de 1754, José Vieira já havia tomado posse da sesmaria e foi o responsável pela construção do imponente e requintado sobrado por volta de 1750, e também da Capela em honra à São José, benta em 1º de janeiro de 1761, onde foi enterrado em 06 de março de 1782, deixando para sua esposa, Ana Maria de Oliveira, a posse da sesmaria. O casal não teve filhos.
A sesmaria da Campo Alegre e a da Favacho eram limítrofes. João Francisco, o patriarca da família Junqueira, constantemente negociava com José Vieira, eram compadres, e acredita-se que tenha adquirido a sesmaria da Favacho de Ana Maria, a viúva.
Em 1810 a Favacho passa oficialmente a pertencer ao Capitão João Francisco Junqueira, tornando-se o centro das atividades agropastoris e familiares, tendo em vista a excelência das construções em contraste às modestas instalações da Campo Alegre.
FAMÍLIA JUNQUEIRA
- A Base
João Francisco Junqueira, o patriarca, e sua esposa, Elena Maria, se estabeleceram na Campo Alegre em 1763.
Em 1810 a Favacho passa oficialmente a pertencer ao patriarca, que legou a fazenda Campo Alegre ao seu filho caçula, Gabriel Francisco Junqueira (Barão de Alfenas), e a fazenda Favacho ao primogênito, o Capitão João Francisco Junqueira Filho, que bem mais adiante a transferiu ao seu filho, o Major José Frausino Junqueira. Com isso, configuravam-se três gerações à frente da Favacho em que coincidentemente as iniciais tinham as mesmas letras: JF, marca perpetuada por seus descendentes.
Podemos então considerar o início da linhagem de cavalos da nossa família anterior a vinda da Corte Imperial para o Brasil, em 1808, visto que, mesmo antes da fundação da Coudelaria Real de Cachoeira do Campo, em 1819, quando houve maior interesse e estímulo para a criação e desenvolvimento da raça cavalar, devido ao declínio da mineração do ouro e a ascensão da atividade agropecuária, já existiam indícios de uma raça nacional – o cavalo dos Junqueira. É assim que nos registros da Coudelaria, entre os anos de 1821 e 1827, aparece um cavalo não pertencente a Coudelaria, o “Cavalo Junqueira”, provavelmente um reprodutor diferenciado, prova disso era o fato de serem seus filhos distinguidos pela origem – Filhos do Cavalo Junqueira – e não simplesmente como “Cavalo de fora”, forma pela qual os outros eram citados.
Gabriel Francisco Junqueira (Barão de Alfenas), recebeu do Príncipe Regente D. João VI um cavalo da raça Alter, vindo da Coudelaria Real de Alter do Chão, no Alentejo, que, cruzado com as éguas descendentes ou colaterais do Cavalo Junqueira, proporcionou grande evolução na tropa. Esse cruzamento foi a base das atuais raças Mangalarga e Mangalarga Marchador.
JOSÉ FRAUSINO
José Frausino, neto do patriarca da família Junqueira e herdeiro da Favacho, sobrinho contemporâneo do Barão de Alfenas.
Ele foi quem mais se dedicou à seleção, considerado o homem que mais entendia de cavalos do seu tempo.
Protagonizou um inédito investimento adquirindo, em 1828, o garanhão batizado de Fortuna, em troca de 40 vacas holandesas.
José Frausino, mesmo cego, em virtude de uma catarata, continuou a caçar, ele ouvia a caçada, método também utilizado na seleção da tropa, o que demandou o calçamento do pátio debaixo da janela do seu quarto. Pelo som da batida do casco nas pedras ele ouvia a marcha e selecionava os animais que deveriam ser mantidos.
Obstinado, seguiu a cavalo para o Rio de Janeiro e, por meio das mãos hábeis do Dr. Hilário de Gouvêia (médico que empresta seu nome a uma rua em Copacabana), recuperou a visão após a cirurgia inédita no Brasil.
Outro cavalo adquirido por ele foi o Gregório, em 1833, negociado com Carlos Sá Fortes, dessa vez em troca de 20 novilhas turinas (mestiças de holandês), para fazer parte do cerimonial de seu casamento com Ignácia Fortes.
De acordo com a tradição, o noivo chegava na cerimônia acompanhado por seus amigos, todos montando animais selecionados.
Carlos Sá Fortes, além de tio de Ignácia, foi padrinho de um dos filhos do casal, João Bráulio, que viria a ser o fundador da fazenda Campo Lindo.
Gregório, um tordilho claro, foi o pai do Manco, que passou a ser chamado assim após ter fraturado a omoplata, o que o tornava impróprio para a lida, porém não como importante raçador. Foi um padreador de qualidades excepcionais e encabeça toda uma linhagem com ramificações até os nossos dias. Mas foi o Fortuna quem deixou maior contribuição, gerando Fortuna I, II e III.
Além de João Bráulio, fundador da Linhagem JB, José Frausino foi o pai do José Frausino Filho, fundador da Linhagem Traituba.
Para se ter dimensão de sua importância, basta analisar que 3 das 6 Linhagens Pilares da raça Mangalarga Marchador descenderam diretamente dele (Favacho, JB e Traituba), e dos 7 cavalos apontados como Pilares, 2 ou talvez até 3 pertenceram a ele.
FAVACHO E A ALTA MOGIANA
Francisco Antônio Junqueira e João José de Carvalho, cunhados, deixaram Cruzília em 1816 para se estabelecerem no interior de São Paulo.
Devido a uma chuva torrencial e incessante, tiveram que acampar às margens do Ribeirão do Rosário, cuja nascente é no atual município de Orlândia.
Depois tomaram posse de aproximadamente 70 mil alqueires, compreendendo os atuais municípios de Orlândia, Morro Agudo, São Joaquim da Barra, Guaíra, Ipuã, Jaborandi, Colina, Barretos, Viradouro e Terra Roxa.
A semente do desenvolvimento estava lançada.
Mais tarde, Francisco Antônio e João José dividiram a posse, permanecendo Francisco Antônio às margens do Ribeirão do Rosário, a que deu o nome de Fazenda Invernada, e João José se instalou no município de Morro Agudo, na fazenda denominada Santo Inácio.
Quando morreu, em 1848, Francisco Antônio, além da viúva, deixou os filhos: Maria Clara, João Francisco, Francisco Marcolino (Capitão Chico), Genoveva Clara, Ana e Gabriela Vitalina. Capitão Chico adquiriu as partes dos irmãos na Invernada e casou-se com sua prima, Maria Paula Junqueira Franco. Ao morrer, em 1887, deixou para a viúva e os 8 filhos cerca de 45 mil alqueires.
Três das filhas do Capitão Chico se casaram na família, sendo: Genoveva Clara com o José Frausino Fortes Junqueira Neto (neto do José Frausino), Helena Fausta com o Antônio Torquato Junqueira (filho do José Frausino) e Adelina com o Francisco Olintho Fortes Junqueira (filho do José Frausino).
Após o falecimento do José Frausino, aos 80 anos, a Fazenda Favacho foi assumida por Francisco Olintho e Adelina. Na fotografia, feita em 23 de abril de 1884, é o casal da direita.
Francisco Olintho deu continuidade ao rigoroso trabalho de seu pai, ele faleceu em 1901, vítima de um tiro acidental durante uma caçada. Após essa tragédia, Adelina decidiu voltar para a Invernada e assumiu a fazenda Aroeira Bonita, deixando a Favacho sob os cuidados de sua filha, Josefa, que se casou com o primo Gabriel Fortes Junqueira de Andrade (Cel.Bilota), neto do João Bráulio, fundador da Campo Lindo.
GABRIEL E JOSEFA
- Matrimônio entre um bisneto e uma neta do José Frausino
Gabriel Fortes Junqueira de Andrade (Coronel Bilota) assume a Fazenda Favacho após se casar com Josefa, sua prima.
João Bráulio (avô do Gabriel) e Francisco Olintho (pai da Josefa) eram irmãos, filhos do José Frausino.
Tiveram 5 filhos: José Bento, Célia, Stella, Geraldo e Rubens.
Bilota foi titular num período em que a criação de cavalos passou a contar com uma gestão mais esmerada, com a implantação dos livros de registro, evolução nas características dos indivíduos e valorização dos plantéis.
Exímio cavaleiro, foi o responsável por trazer para a Favacho, em 1939, o reprodutor Armistício, descendente dos Fortuna, crioulo da Consulta, considerado um divisor de águas na tropa.
O primeiro registro genealógico dos animais da Linhagem Favacho aconteceu em 1943, na Associação Brasileira dos Criadores da Raça Mangalarga, localizada em São Paulo, já que ainda não existia uma entidade voltada para o seguimento em Minas Gerais.
Nessa ocasião passou-se a utilizar a regra do alfabeto, isto é, a cada ano inicia-se o nome dos animais com uma letra em sequência. Antes disso não havia um parâmetro preestabelecido para a escolha dos nomes.
Além da tropa, Bilota também se destacou na seleção dos cães de caça e do gado holandês.
JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO
- 29 de junho de 1982
Os Junqueira usam bengala, ou pelo menos as colecionam, criam cavalos e cachorros, guardam cartas e testamentos de seus antepassados como se fossem relíquias. Seriam uma família brasileira qualquer se desde o início não tivessem feito do passado matéria de memória e culto. Suas histórias já se transformaram em lendas. Eles desbravaram terras, fizeram revoluções, fundaram cidades e espalharam-se por todo o país. A árvore genealógica dos Junqueira contém uma emaranhada profusão de Gabriéis, Franciscos, Anas e Helenas. É preciso também muito cuidado ao examinar os álbuns de família, são tão semelhantes que um neto parece a reencarnação do avô. No início casaram entre si, uma forma de não desmembrar suas imensas posses.
O caminho histórico que leva à fazenda Favacho, o solar dos Junqueira, começa em Cruzília, cidadezinha onde todos se conhecem pelo nome. Daí, toma-se uma trilha de 30km que termina na porta do solar, onde, as seis horas da manhã, já é possível ver Gabriel Junqueira, o Bié, de 26 anos, tirando leite das vacas. É um dos mais jovens descendentes do patriarca, um sujeito alto, rude, de barbas ruivas, mãos calosas e grossas, um sorriso ingênuo que às vezes se transforma numa gostosa gargalhada quando brinca com seus cachorros ou lembra a cara espantada de um veado que vem caçando e que jamais permitiu que fosse ferido. Ali no curral, todo sujo de esterco, cheirando a vacas, a indefectível bengala à mão: Gabriel é um Junqueira.
Andando pelos cômodos do solar, tudo impecavelmente limpo pelas oito empregadas, Bié conta que está sozinho, seus irmãos não moram na fazenda, o pai está viajando com a mãe, então neste momento ele é o único morador deste prédio enorme pelo qual passaram gerações de Junqueira.
- A mobília desta sala, conta Bié, nos foi doada há um século pelo Barão.
Mas, de repente, ele volta ao presente, conta que cem pessoas vivem ali, empregados e filhos de escravos que jamais quiseram ir embora. A fazenda é deficitária – diz ele. Já pensamos até em vender a sede, mas aí eu penso: “se quiserem me arrancar um pedaço, é só me tirar daqui”.
RUBENS JUNQUEIRA DE ANDRADE
- 6ª geração dos Junqueira à frente da Favacho
Nascido na fazenda Favacho em 15 de julho de 1920, caçula dos 5 irmãos, filho de Gabriel Fortes Junqueira de Andrade e Josefa Junqueira de Andrade.
Fez seus estudos iniciais em Cruzília, prosseguindo-os em Varginha.
Desenvolveu rebanho de gado holandês com tamanha competência que ganhou inúmeros torneios leiteiros, conquistou inclusive um recorde sul-americano de produção.
No cavalo, prosseguiu a utilização do célebre Armistício, e Candidato, sementais que robusteceram o plantel, produzindo notáveis e premiadas gerações até os dias de hoje.
Foi vereador por diversas legislaturas, ao tempo em que eles nada recebiam e a câmara era composta exclusivamente por idealistas prontos a doarem seus esforços para o bem da municipalidade.
Foi também presidente do Sete de Setembro F. C., cujo primeiro titulo ocorreu em seu mandato.
Membro durante muitos anos do Corpo de Jurados, função que constantemente o levava a ficar à disposição da Justiça.
Foi Presidente do Rotary Clube de Cruzília e membro durante décadas.
Sócio fundador do CRE, do Clube do Cavalo de Cruzília e do Clube Campestre Ipê.
Benfeitor do hospital e da paróquia, sempre presente em eventos filantrópicos.
Casou-se em 1953 com Nízia Aguiar Andrade, seu braço direito na condução da Favacho e sustentáculo que permitia suas ações político-sociais. Tiveram três filhos, Haroldo, José Gabriel (Bié do Favacho) e Rubinho.
Aficionado do futebol, torcia no Rio de Janeiro para o Fluminense e em Minas para o Atlético Mineiro, por quem era credenciado “Cônsul Honorário”.
Mais velho, mudou-se para Cruzília, morava ao lado da Igreja Matriz, adquiriu a fazenda Linda Flor e continuou a cuidar da tropa Favacho e do seu plantel de gado holandês.
Faleceu em 1995 e foi sepultado no cemitério de Cruzília.
NÍZIA DO FAVACHO
- Homenagem de Adolfo Maurício Pereira
Soube agora do falecimento de D.Nízia. Ela faleceu dia 6 e foi sepultada em Cruzília, no bonito jazigo dos seus familiares. Viúva do saudoso Sr.Rubens, proprietário marcante da bicentenária faz.Favacho, onde sempre se destacou como criador e titular do prefixo Favacho. D.Nízia era ativa, sempre e muito. A importância dela era tanta que a ABCCMM já manifestou seu pesar pela perda de uma associada tão empenhada. Mas, como não sou do ramo, tenho outra imagem de D.Nízia, diferente dessa do envolvimento com as atividades agropastoris. Era uma mulher forte, determinada e gentil. Meu primeiro contato com ela foi quando minha irmã, Maria Célia, visitou a escola da Favacho, como inspetora. Era uma visita técnica à escola, que naquele tempo tinha mais de 70 alunos. Pouco tempo antes do almoço, apareceu D.Nízia, amazona elegante e destemida, que apeou e nos cumprimentou com cortesia. Convidou-nos, quase intimando, para o almoço. E que almoço. Feito com esmero como se fosse para a recepção de dignitários. Era tempo em que profissionais da educação eram recebidos com respeito e consideração. Acompanhei sua atuação como empreendedora, esposa, mãe, rotariana e cidadã. Não existia movimento social ou religioso em Cruzília, onde ela não estivesse à frente, coordenando ou colaborando. Eventos da paróquia, hospital, família Junqueira, Rotary ou CRE, sempre contavam com a sua eficiência, destacada pela sua imponente estatura e seu sorriso largo de dentes fortes. Era uma mulher marcante. Quando fiquei sabendo de sua morte, veio-me à cabeça a figura de Ana Terra, lá do “Tempo e o Vento” de Érico Veríssimo, misturada com dona Benta do “Sítio”, de Monteiro Lobato e Úrsula Iguarán, de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Márquez. Somadas, elas são a personificação da mulher forte e destemida, mas também sensível e amorosa. D.Nízia foi assim: uma matriarca que escreveu histórias todos os dias – ora com determinação, ora com brandura, e sempre com muito amor à família e às tradições que desde os anos 1740 foram dispersas pelos ventos inquietos do Favacho e consolidadas pelos olhos justiceiros da história.
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