Prestes a dar à luz o seu segundo filho, a manicure Ana Claudia Silva Santos, de 40 anos, viveu o último ano em um mar de incertezas. Desempregada, ela tem um filho de 2 anos e meio e recebia o valor de R$171 proveniente do Bolsa Família, que depois foi substituído pelo auxílio emergencial de R$375, o qual está próximo de acabar.
Com o valor do auxílio emergencial, a manicure tenta se virar como pode. Paga R$200 pelo aluguel da casa onde reside há cerca de dois meses, no bairro Jardim Cruzeiro, além dos recibos de água e luz, que juntos custam em torno de R$100. O que sobra mal dá para comprar alimentos e para adquirir um botijão de gás, recorrendo ao álcool para cozinhar.
“Já tenho mais de um ano desempregada. Nessa pandemia, me mantive com a ajuda da minha irmã e tive dificuldades para comprar alimentos. O gás, me doaram na semana passada. Antes eu cozinhava com o álcool. Eu pegava uma tábua, uma latinha de cerveja, cortava ao meio e botava um prego. Quando tinha alguma coisa pra comer, eu fritava um ovo, cozinhava um feijão”, relatou.
A reportagem gravou com Ana Claudia no dia 14 de outubro e, por volta das 10h30, ela ainda não tinha nenhum tipo de carne na geladeira para misturar ao almoço. A irmã havia ido ao centro da cidade tentar receber um pagamento e Ana Claudia ligava para o ex-marido a fim de que ele pagasse a pensão atrasada da filha, que não iria passar de R$100, como relatou.
“Em termos de alimentos, têm dias que tem e têm dias que não tem nada. Quando minha irmã me ajuda ela compra pra ela e os três filhos, e ainda divide comigo. Como eu recebi há uns dias atrás, eu cozinho um arroz com água e sal, e às vezes minha irmã compra 10 ou 15 reais de carcaças e a gente divide pra comer. A carne está cara e eu compro carcaças de frango, que só vem pé, costela, pescoço, e às vezes moela”, afirmou.
Relatos como os de Ana Claudia não representam uma realidade nova no país. No entanto, com a crise econômica impulsionada pela pandemia, histórias como a da manicure passaram a se multiplicar, revelando o retrato da fome e da miséria.
“Não sobra nada. Já tem mais de um ano eu cozinhando com o álcool, sei do perigo, mas infelizmente sem condições e com a pandemia, não tinha como. Mas, graças a Deus me doaram um botijão. Depois que eu parir, vou ver o que vai acontecer. A única pessoa que me ajuda é minha irmã, mas agora ela vai embora pra São Paulo. Ela nem sabe disso, mas cada dia que passa vou me desesperando. Quando ela tem comida, ela divide comigo. Ela é cabelereira e, às vezes tem, às vezes não tem.”
Ainda segundo ela, já foi ao Centro de Abastecimento pedir doações de ossos para engrossar o caldo da comida, mas nem sempre encontra, porque até isso alguns comerciantes não querem mais doar.
“Eu compro as carcaças no abatedouro, um quilo é quase R$8 e só dá para dois dias. Não compro mais pele, porque não acha mais no açougue. Já fui até no Centro de Abastecimento pedir doação de ossos, pra colocar no feijão pra fortalecer mais e comer. Às vezes eu acho. Antigamente davam. Hoje em dia, vendem por R$2 ou R$3 o quilo.”
Pessoas da comunidade que desejarem ajudar Ana Claudia Silva dos Santos podem entrar em contato com ela através do telefone da irmã Denise, através de número 75 9121-4937.
Ossos, carcaças e peles
Há 14 anos com um box de carnes do Centro de Abastecimento, a comerciante Margareth dos Santos Santana, informou ao Acorda Cidade que nos últimos meses, com a elevação nos preços dos alimentos, sobretudo a carne vermelha e o frango, cresceu a procura por carcaças no seu estabelecimento.
O preço das carcaças de frango varia entre R$3 e R$10. A de R$3 vem só a carcaça; a de R$4, vem fígado e moela; a de R$8 vem fígado, moela e asa e a R$10 é que vem com a coxa, tirando o peito. A procura por esse tipo de alimento aumentou muito nos últimos dias, principalmente a de R$3. Tudo está aumentando. E mesmo assim as pessoas reclamam, porque antes custava R$1, e com R$10 o cliente levava 10 quilos de carcaça. Hoje com R$10 só leva cerca de três quilos”, contou.
Margareth dos Santos não prevê melhoria tão rápida desse cenário. A expectativa, segundo ela, é que o preço da carne de frango deve subir ainda mais até o final do ano. Ela avalia ainda que muitas pessoas estão passando necessidade, e têm receio de dizer que estão comprando os ossos da galinha para se alimentar.
“Tem pessoas que são realistas e falam que é para comer, mas tem pessoas que por vergonha dizem que é para o cachorro. Em média, eu vendo uns 30 quilos de carcaça por dia. Antes o consumidor costumava comprar 10 quilos e hoje em dia diminuiu pra 5 ou 6 quilos.”
O comerciante Leilson Gomes da Silva, que também mantém um box no Centro de Abastecimento, revelou que muitas pessoas têm chegado ao local pedindo um pacote de osso ou peles para levar pra casa.
“A carne que não é vendida aqui a gente bota na graxaria e quando chega gente pedindo aqui a gente pega um pacote de osso e dá. Chega muita gente aqui pedindo pele, um pedaço de qualquer coisa que não sirva para nada pra se alimentar e a gente dá. Só a pele e sebo, e muita gente chega pedindo. Outro dia chegou um menino que morava no Aviário e perguntei se ele queria um pacote de osso, e ele pediu um pacote de pele”, relembrou.
Segundo Leilson Gomes, no box dele o quilo do osso custa em média R$1,70 e três quilos saem por R$5. Já a carne que sobra e não dá mais para ser comercializada para o consumidor, é vendida para um graxaria no campo do Gado, onde se produz ração para cachorros.
“As pessoas compram ossos pra botar na sopa, no feijão, só pra dar o gosto. A carne que a gente não vende aqui, vendemos pra graxaria no campo do gado, e eles fazem ração pra dar a cachorro e também óleo. E um quilo de carne com osso, a gente vende por R$20”, disse.
Inflação
De acordo com o economista e professor universitário Antônio Rosevaldo Silva, vários fatores têm contribuído para o aumento do valor da carne em todo o país, a exemplo da alta do dólar e a valorização do produto no mercado externo.
“O preço é determinado basicamente pelo preço da arroba. Algumas variáveis vão impactar na definição dos preços, por exemplo, quando o mercado externo está aquecido, os produtores de carne preferem exportar do que vender no mercado interno. Para vender no mercado interno eles atrelam o preço ao mercado internacional, e como o dólar está elevado e o real desvalorizado, e só vendem no mercado interno se compensar o preço internacional e aí o preço aumenta.”
Outra variável que impacta, além da questão do dólar, é o preço do óleo diesel. Segundo o economista, o valor do combustível tem relação com o preço do frete.
“Como os bois vivos são transportados do frigorífico da fazenda em caminhões, o custo do frete aumenta. Depois, é transportado do frigorífico para o mercado consumidor em caminhões refrigerados, o que também consome o óleo diesel, então o preço do frete acaba também afetando todos os produtos, como a carne.”
Antônio Rosevaldo avalia que atualmente as pessoas estão gastando de 30 a 40% do valor da cesta básica com a carne, e se as pessoas não gastassem hoje tanto com o alimento, sobraria para comprar outras coisas.
“O consumidor sempre faz a opção por produtos. Alguns substituem e outros só gostam de carne bovina. Uns substituem pela carne de frango, que também está alta, porque a ração também está atrelada ao dólar. A inflação dos alimentos é um índice que nós economistas temos calculado muito ultimamente e ela está quase 50% acima do índice oficial. Isso pesa mais para a população de baixa renda, que gasta basicamente com alimentos e muito pouco com o lazer, e a baixa renda nos últimos meses não tem tido lazer ou substituindo um lazer melhor por um lazer pior.”
A inflação sobre o preço da carne bovina e de frango, segundo o economista, está fazendo com que cada vez mais pessoas consumam vísceras, carcaças e ossos, e isso prejudica também a saúde dos consumidores.
“No supermercado o preço da carne de frango está sempre próximo da carne bovina, que é um item natural de substituição. Como o produto também está caro, o consumidor começa a olhar as vísceras, carcaças, e a partir do momento que as pessoas começam até a cobrar pelo osso do patinho, ossos de todos os tipos, as pessoas estão entrando numa redução de proteína e numa faixa de insegurança alimentar, e o corpo humano fica mais propenso a doenças. A crise hídrica, a seca que tem assolado o Brasil nos últimos anos tem provocado uma queda no rebanho. Não tem nascido bezerros, porque muitas vacas foram abatidas pela seca. Tem menos carne sendo ofertada no mercado e aí entra o mercado externo e isso com certeza causa um desabastecimento, o que provoca o aumento dos preços.”
Com informações do repórter Ed Santos e da jornalista Maylla Nunes do Acorda Cidade.
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