Ele tem 39 anos e, apesar da idade juvenil, tem muita história contar. As páginas de sua vida, hoje, estabilizada, foram escritas muitas vezes com lágrimas, dor e sofrimento comuns aos inúmeros garotos negros do seu tempo que viviam, e muitos ainda vivem, na periferia do maior bairro de Feira de Santana, o Tomba, onde o Dr. Gileno nasceu e se criou.
O personagem desta história real caminhava pelas estradas da invisibilidade, mas, ganhou projeção nacional no último domingo (11), quando sentou na cadeira de milhões e acertou todas as perguntas do quadro “Quem quer ser um milionário?” comandado por Luciano Huck. Mas, o que motivou o médico e capitão da PM de Feira de Santana entrar na disputa para ser o mais novo milionário da sua cidade?
Seu nome completo é Gileno dos Santos Cerqueira Júnior. Formado em Medicina pela UEFS, em 2019, ele atua como médico plantonista na UTI do Hospital de Traumatologia e Ortopedia e como intervencionista no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Quinze anos antes de se tornar médico, Gileno ingressou na Polícia Militar, onde, hoje, exerce a função de médico da Unidade Básica de Saúde do 1º Batalhão. Mas, garanto que não tive uma trajetória fácil”, disse ele.
O menino negro do Tomba
“Sou de origem humilde, minha mãe era lavadeira, e o meu pai vigilante patrimonial. Vivemos a maior parte das nossas vidas na periferia de Feira de Santana, no bairro Tomba, onde passamos por muitas privações financeiras. Mesmo com todas as adversidades e pouca instrução, meus pais sempre incentivaram a mim e a minha irmã a estudar. Eles até tentaram nos proporcionar um ensino de qualidade, mas as mensalidades das escolas particulares não cabiam no nosso orçamento. Estudei na rede particular até a 6ª série, através de bolsas, pois o meu pai trabalhou como vigilante em algumas empresas que proporcionavam esse benefício, mas logo ele ficou desempregado e passei a estudar em escolas públicas”, lembrou.
Por conta desse contexto adverso, ele conta que teve que começar a trabalhar aos 9 anos de idade, “numa mercearia montada pelos pais”. Então, insatisfeito com a vida de privações, ele focou nos estudos para mudar o cenário das coisas. “Eu estudava por muitas horas em casa, na mercearia, despachando bebidas para clientes, que diziam para a minha mãe que eu iria ficar “doido” de tanto estudar. Mas, essas pessoas e a condição de vida, só me motivavam mais e mais”.
Os desafios e as adversidades da vida
Com 16 anos, Gileno prestou o concurso para a Escola de Aprendizes de Marinheiro e, apesar de ter a quarta melhor nota do Nordeste, foi eliminado no exame médico-odontológico. Ele tinha má-oclusão severa e não dispunha de recursos financeiros para realizar tratamento ortodôntico (colocar aparelho). “Na época, fiquei muito triste, mas eu sabia que Deus tinha reservado algo melhor para mim”, afirmou. Um ano depois, ele presta vestibular para Engenharia Civil na UEFS e para o Curso de Oficiais da Polícia Militar da Bahia pela UNEB. Foi aprovado em ambos. “Iniciei os estudos na faculdade de engenharia, mas não consegui me manter, pois apesar da universidade ser pública, não tínhamos como arcar com as despesas atinentes a passagens e materiais do curso. Situação que me fez ingressar na Polícia Militar a fim de garantir a minha estabilidade financeira”. O tempo passou e, em 2010, Gileno foi aprovado em medicina, mas na Universidade do Sudoeste da Bahia, campus de Jequié, distante a cerca de 250km de Feira de Santana. Ele até chegou a fazer a matrícula, porém não consegui transferência para o batalhão da Polícia Militar de Jequié. “E foi o ano em que a minha filha, Tainá, nasceu. Então resolvi tentar o vestibular da UEFS mais uma vez e cursar medicina na minha cidade, perto da minha filha. Em 2012, fui aprovado na UEFS”, lembrou.
A morte da mãe
Depois de muitas noites perdidas e finais de semanas de trabalho a bordo de viaturas, Gileno se formou médico em 2019. “Porém, antes da grande conquista, no dia do ensaio fotográfico para o convite de formatura, mais precisamente em 06/04/2019, Gileno recebeu a notícia que jamais queria ter ouvido. Quando estava no estúdio, recebeu a ligação de um primo informando que sua mãe tinha sofrido um infarto e tinha falecido. “Minha mãe, a pessoa que mais me apoiou na trajetória da medicina (eu trabalhava na PM e estudava medicina ao mesmo tempo) morreu sem ter a oportunidade de me abraçar e me entregar o diploma. O sonho dela era que eu fosse cardiologista”, lembrou.
Mugambi e o racismo estrutural
De acordo com Gileno um dos grandes desafios encarados pelos médicos que trabalham no SUS é receber o seu salário em dia e o médico negro ainda tem um agravante a mais, seja na iniciativa pública ou privada, a questão do racismo estrutural. “Em vários hospitais que trabalhei, fui confundido como maqueiro, técnico de enfermagem e porteiro (com todo respeito a estas profissões, que são dignas como qualquer outra, mas o problema é a visão de que o negro não pode conquistar determinados espaços). Lembro que quando cheguei no hospital de Campanha de Feira pela primeira vez, um maqueiro gritou: “Maqueiro!”(referindo-se a mim). Imediatamente eu o chamei e o expliquei sobre a questão do racismo estrutural. Foram várias situações, resolvi usar esta como metonímia”.
As situações de racismo vividas tanto na infância quanto na vida adulta despertaram em Gileno o desejo para eu estudar sobre racismo estrutural e filosofia africana, bem como o impulsionaram a buscar informações sobre as suas origens. “É tanto que fiz viagens para o continente africano (África do Sul, Namíbia e Egito) com esse intuito. E também realizei o teste de ancestralidade pela Genera e pela My Heritage, neste ano, quando descobri que aproximadamente 52% da minha genética é nigeriana e 16% é queniana. Com isso, quero introduzir um sobrenome africano ao meu nome, que só tem referências portuguesas, dos “Santos” e “Cerqueira”. E o teste genético me norteou para a escolha do novo sobrenome “Mugambi”, que significa rei em suaíli, idioma oficial do Quênia”, afirmou.
Futuro milionário
Superada todas as adversidades, Gileno confessa que está realizado profissionalmente. Mas, por que então se inscrever no quadro “Quem quer ser um milionário? Ele revelou: “Quero me especializar na área de cirurgia, mas preciso de uma reserva financeira considerável para me manter na residência médica, que exige muitas horas de estudo e estágios, o que dificulta a possibilidade de trabalhar. Com isso, conto com Deus primeiramente e com a sorte no Quem Quer Ser Um milionário para realizar o sonho da residência em cirurgia”, finalizou.
Ele, que já conheceu 29 países de 4 continentes, já garantiu R$ 20 mil na primeira participação. Na próxima semana, Gileno terá a oportunidade de brilhar outra vez, orgulhar todos os baianos, em especial os da sua terra, e, ainda, se tornar milionário para realizar seu maior sonho.
Participação na Domingão do Huck
O participante respondeu a 8 perguntas e alcançou um prêmio inicial de R$ 20 mil, porém por conta do tempo esgotado, Gileno terá que retornar no próximo domingo para completar sua participação no quadro rumo à pergunta do milhão.
“Ontem foi uma sensação que não sei descrever, porque além da vontade de ganhar R$ 1 milhão, a minha vontade de sentar naquela cadeira, no horário nobre, em frente ao Luciano Huck, um apresentador bem quisto e por todos, era para contar minha história e representar a muitos, porque sei que minha história é o espelho de muita gente por aí afora, principalmente pessoas negras, que vieram da periferia, enfrentam dificuldades e estão a todo momento tentando transpor as barreiras do racismo estrutural e social”, afirmou em entrevista ao Acorda Cidade, na manhã desta segunda-feira (12).
Com informações do Jornal Folha do Estado e Acorda Cidade
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