Enquanto o governo Jair Bolsonaro (PL) libera recursos da educação para aliados, o MEC (Ministério da Educação) trava a liberação de R$ 434 milhões a prefeituras de todo o país e deixa paradas construções de creches, escolas, salas de aulas e quadras. Os valores referem-se a 1.369 prefeituras. Ao todo, 1.780 obras que foram pactuadas entre municípios e o governo federal, a partir de 2012, estão aptas a receber dinheiro federal. O governo Bolsonaro, entretanto, não efetiva as transferências.
Na cidade de Campo Largo do Piauí (PI), por exemplo, o que deveria ser uma creche é por enquanto apenas um esqueleto de paredes sem reboco, de acordo com a última vistoria técnica, de setembro passado. A obra teve execução de 62% e está paralisada —o FNDE deve R$ 650 mil para o município.
Os dados, obtidos pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação, reforçam o cenário de ausência de critérios técnicos que impera no FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). O fundo é ligado ao MEC e responsável pela gestão desses recursos.
Os municípios do Ceará concentram 11% dos valores em atraso do FNDE. Em 2021, eles receberam apenas 7% de tudo o que foi pago no âmbito do PAR (Plano de Ações Articuladas, mecanismo de transferências do fundo). Neste ano, foram o destino de somente 2,6%.
Na cidade cearense de Russas, a construção de uma escola técnica firmada em 2014 está empacada, com 62% de execução, porque o FNDE deve R$ 2,3 milhões ao município. A prefeitura foi procurada, mas não respondeu.
O FNDE é controlado por indicações do centrão. O presidente, Marcelo Lopes da Ponte, era assessor de Ciro Nogueira (PP-PI), atual ministro da Casa Civil do governo Bolsonaro e um dos líderes do bloco de apoio à atual gestão federal. O órgão virou uma espécie de balcão político, com atuação de pastores na liberação de novas obras, explosão de empenhos para atender políticos aliados ao governo Bolsonaro e até burla no sistema, como a Folha vem mostrando desde o mês passado.
Do total de processos vinculados a recursos atrasados pelo FNDE, há casos em que os municípios já concluíram as obras por conta própria —o que representa 43% do total. Outros 45% constam como obras em execução e 12% como paralisadas.
O atraso ocorre ao mesmo tempo em que há priorização nos pagamentos de recursos da educação de interesse de aliados do presidente Jair Bolsonaro. Até 15 de abril deste ano, por exemplo, o governo pagou no país todo R$ 110 milhões por meio do mecanismo de transferências do FNDE. Desse total, quase um terço foi para 7 municípios de Alagoas e 2 de Pernambuco com contratos de kits de robótica com uma mesma empresa de um aliado do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
A Folha revelou que essas sete cidades alagoanas já receberam neste ano R$ 26 milhões de dinheiro federal para robótica, apesar de sofrerem com uma série de deficiências de infraestrutura básica, como falta de salas de aula, internet e até água encanada. Ao somar outros dois municípios pernambucanos que também contrataram a empresa Megalic, o valor chega a R$ 31 milhões.
A empresa garantiu atas de registro de preços em vários municípios, em editais bastante similares entre eles. As descrições do produto licitado condiziam com as do robô fornecido pela empresa.
A Megalic não fabrica os equipamentos, mas trabalha como intermediária. A empresa tem vendido os robôs para prefeituras por R$ 14 mil, valor 420% superior ao pago por parte deles, como a Folha revelou.
O balanço geral de recursos do FNDE no estado de Alagoas chama atenção. Somente 1,4% dos recursos atrasados do FNDE são relacionados a prefeituras alagoanas.
Por outro lado, 26% de tudo o que foi pago neste por meio do PAR em 2021 foi para lá. Sobretudo para as prefeituras comparem os kits de robótica da Megalic. A empresa é do pai do vereador de Maceió João Catunda, e ambos são aliados de Lira. O vereador, a empresa e o presidente da Câmara negam irregularidades.
A secretária de Educação da cidade de Flexeiras (AL), Maria José Gomes, confirmou à reportagem que Lira atuou para liberar os recursos federais para a compra de equipamentos de robótica. A prefeitura, disse a gestora, também contou com a consultoria de uma assessora parlamentar ligada ao vereador João Catunda.
Apesar de receber dinheiro para robótica, Flexeiras tem uma creche paralisada na mesma rua da Secretaria de Educação. Pelos dados do FNDE, no entanto, não há recursos atrasados do órgão para essa prefeitura.
Visitada pela Folha, a cidade de União dos Palmares (AL), por exemplo, recebeu neste ano R$ 7,5 milhões para robótica —o maior valor transferido no ano para uma prefeitura.
A prioridade para a robótica ignorou que o próprio FNDE tem uma pendência de R$ 127 mil para término de duas quadras, além de já contar com deferimento técnico para novas transferências para o término da creche inacabada no bairro Condomínio Newton Gonçalves, na periferia do município.
União dos Palmares também não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Os dados do FNDE obtidos pela Folha mostram que não há restrições burocráticas para os municípios receberem o dinheiro, mas há casos, como o de Russas (CE) e Campo Largo do Piauí (PI), que o governo Bolsonaro simplesmente cancelou o empenho referente às transferências de obras inacabadas.
Isso ocorreu numa série de publicações da área econômica do governo Bolsonaro —o empenho é a primeira etapa da execução orçamentária. O cancelamento de empenhos atinge 77% dos R$ 434 milhões que o FNDE deve aos municípios.
A reportagem questionou o Ministério da Economia sobre esses cancelamentos e o que será feito para continuidade das obras, mas a pasta não respondeu. MEC e FNDE também foram questionados, mas não responderam.
Além de liberar recursos de maneira desigual pelo país enquanto não paga o que deve a municípios, o FNDE acelerou uma política de distribuir empenhos para novas obras a aliados. Para atender aos pedidos de políticos e lobistas, como os pastores que circulavam no MEC, o FNDE passou a fracionar empenhos (que reservam o dinheiro de obras) em pequenas quantias.
Assim, disparou o valor total autorizado, que se relaciona à previsão do custo total dos projetos. De 2017 a 2019, a média de valores aprovados por ano era de R$ 82 milhões. Em 2020, saltou para R$ 229,4 milhões e, no ano passado, pulou para R$ 441 milhões, como a Folha revelou em março.
Os empenhos também crescem em 2020, chegando a R$ 66,8 milhões, e explodem no ano passado. Em 2021, foram empenhados R$ 285 milhões para novas obras de escolas. Nada relacionado a esses empenhos foi pago neste ano.
Com tantos empenhos (foram 5.727 no ano passado), o governo atende a um maior número de demandas de prefeituras e políticos. Essa etapa, porém, é só uma reserva de recursos, não a liberação em si.
Na prática, há o risco de gerar uma montanha de projetos de novas escolas que nunca sairá do papel, sobretudo com uma realidade de cortes de orçamento da educação.
Em 28 de março o ministro Milton Ribeiro foi exonerado após vir à tona a existência de um balcão de negócios na pasta, com participação de pastores evangélicos sem vínculo oficial com o poder público e acusações de cobrança de propina até em barra de ouro. Ele perdeu o cargo sete dias após a Folha revelar áudio em que ele dizia que privilegiava um dos pastores lobistas a mando de Bolsonaro.
Via: BNews
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