Em 1948 nenhuma cidade do interior da Bahia tinha ginásio público estadual. Na Capital funcionava o Ginásio da Bahia, único estabelecimento de ensino secundário mantido pelo governo do Estado.
Conhecedor das necessidades das regiões baianas no particular da prestação gratuita do ensino médio, e pondo em pratica idéia alimentada na campanha eleitoral de 1946, elaborei um projeto de lei, criando os primeiros ginásios estaduais no interior, segundo um critério de localização regional. Assim, o do Nordeste situava-se em Serrinha, o do Sudoeste em Jequié, os do Sul em Itabuna e Canavieiras e o do Sertão em Caetité.
O de Serrinha deveria funcionar no prédio da antiga Estação Experimental de Sericicultura, serviço que já não existia. As comissões de Educação e Finanças apoiaram a minha iniciativa que a seu ver “focalizou, em caracteres bem vivos e indeléveis, o triste quadro do problema educacional no interior da Bahia”, e estenderam a fundação dos ginásios às cidades de Valença, Barreiras e Jacobina.
Três meses após, graças ao empenho que tive, no dia 14 de dezembro de 1948 o meu projeto era convertido na Lei 130, sancionada pelo Governador Otávio Mangabeira. Mas só em março de 1952 – no governo Regis Pacheco e vencidas algumas dificuldades burocráticas, o ginásio de Serrinha, com a denominação de Ginásio Regional do Nordeste, foi o primeiro a instalar-se e funcionar.
Não percorri, entretanto, estrada suave até alcançar o objetivo colimando. Houve obstáculos, não da parte da Assembleia Legislativa. Lá, ao contrário, e ao que me conste, nunca – nem antes nem depois, houve proposição de relevância semelhante, ou mesmo análoga, que chegasse ao seu termo final de aprovação em tão exíguo tempo. Os obstáculos, que felizmente pude remover, provinham de setores da Administração Estadual.
Explico-me. Secretário de Educação, era o Anísio Teixeira educador de notório mérito e de muito prestígio no Governo. Eu já o sabia e me preparei para o diálogo com famoso pedagogo. Ele só considerava a hipótese de subvenção do ensino posterior ao primário. Por isto, um dia me indagou: “Dr. Rubem, por que o Sr. não parte para criação de cooperativas e com elas fazer ginásios?”.
O Dr. Anísio Teixeira, apesar de baiano, também parecia não estar muito a par da realidade social no interior do Estado, tanto assim que se mostrou surpreso de me ver empenhado em levar o ensino secundário gratuito para Serrinha, “uma cidade de veraneio” – disse-me. Não, não era tal a minha terra, nunca o fora, aliás, sem embargo de lá aparecer, como aparece esporadicamente em qualquer lugar saudável, um veranista eventual. Depois, onde o espirito associativo suficiente, no interior da Bahia, para fundar cooperativas culturais, sem fins econômicos? A meu ver, impunha-se ao Estado – criar e manter – não simplesmente “amparar”, “subvencionar” estabelecimentos de ensino médio. Foi nesse ponto que me firmei, encontrando, por fim, a compreensão de Dr. Anísio Teixeira. Dez anos mais tarde, durante o Governo Antônio Balbino, reencontramo-nos no Palácio de Ondina e ele veio efusivamente, a mim com estas palavras: “Deputado Rubem Nogueira, hoje estou com a sua tese dos Ginásios públicos”. Vindo de um espirito pragmático como o de Anísio Teixeira, muito me confortou esta sua manifestação.
Quando expôs à Assembleia Legislativa (sessão especial de 17 de junho de 1947) o seu plano para o governo da educação, emitiu conceitos coincidentes com a minha forma de pensar, como, entre outros, este: “Democracia é um regime de saber e virtude. E saber e virtude não chegam conosco no berço, mas são aquisições lentas e penosas, por processos voluntários organizados”. Anísio Teixeira sustentava uma educação formadora do homem livre e sábio, do homem livre e virtuoso.
Aproveito o ensejo para consignar um pormenor valioso. Em começo de 1949, graças à conversão em Lei do meu projeto criador dos primeiros ginásios públicos gratuitos do interior do Estado, o Dr. Anísio Teixeira pode executar uma providencia administrativa do maior alcance social, que foi a descentralização do ensino secundário oficial na Cidade do Salvador, onde se concentrava todo no tradicional Ginásio da Bahia. Com base na lei de minha iniciativa – e antes mesmo de se instalar o ginásio de Serrinha-, o governo Mangabeira, pelo decreto 14.307, de março de 1949, fez funcionar o curso ginasial nas Escolas normais de Caetité e Feira de Santana, e instalou os primeiros ginásios de bairros na Capital do Estado (Itapagipe, Nazaré e Liberdade). Mas no começo declarou-me Anísio ser contrario a ginásios públicos. Tive de conversar muito com o combativo Secretário, em diferentes dias, até certificar-me de que ele não criaria empecilhos – como efetivamente não criou – ao trânsito livre do meu projeto.
Já o Secretário da Agricultura, o deputado Nestor Duarte, pessoa da minha antiga e especial admiração, não admitiu que o futuro ginásio de Serrinha viesse a ocupar – como estava no meu projeto de lei – o bem construído e amplo prédio de um serviço já então extinto praticamente: o de experimentação da cultura de bicho-da-seda. Nestor Duarte queria levar avante ali uma experiência de milho hibrido, que de fato tinha apenas iniciado e em pequena escala. Se eu não removesse do projeto a ideia de aproveitar o prédio da antiga Estação Experimental de Sericicultura para outro fim, Nestor Duarte assegurava que o veto do Governador seria inevitável. Tal noticia me foi passada pelo líder da UDN, o deputado Nelson Sampaio. Estaria criado o impasse. Para afastá-lo a única providencia seria emendar o projeto, o que imediatamente fiz, ficando embora sujeito às delongas burocráticas para a liberação dos recursos que inseri no Orçamento de 1949 para a construção de uma sede própria, destinada ao Ginásio de Serrinha.
Mais adiante, contudo, logo no inicio do Governo Regis Pacheco, sendo eu Procurador Geral de Justiça, consegui a transferência do referido imóvel do patrimônio da Secretaria da Agricultura para a da Secretaria de Educação, e, ainda que ele fosse destinado a servir ao Ginásio Estadual da minha terra. Saiu tudo como eu inicialmente planejara.
Em seguida, durante as férias forenses, fui, por minha exclusiva conta, ao Rio de Janeiro entender-me com o ministro Simões Filho, titular d a pasta da Educação e amigo feito na campanha de sucessão de Otávio Mangabeira, em que o seu nome por pouco não foi o indicado para governador do Estado. Pretendia obter do Dr. Simões Filho todas as facilidades possíveis no sentido de realizar, no inicio ainda do ano letivo de 1952, o exame de admissão. Mas o ministro estava numa estação de águas, e assim tive que encaminhar todas as providencias cabíveis com o seu substituto e os diretores vinculados ao Ensino Médio. Deu tudo certo. O Inspetor Federal designado, o meu velho e caro amigo Dr. Jenner Barreto Bastos, estava fora da Capital, em férias, mas o me pedido interrompeu-as, foi à Serrinha, onde os candidatos ao exame de admissão estavam a postos, e presidiu aos exames na data marcada, em que pese aos boatos derrotistas de adversários políticos. E o ginásio de minha terra começou no dia 30 de março de 1952 a sua benemérita trajetória. O primeiro instalado no interior da Bahia.
Quem era adulto em 1952, em Serrinha, e continuou vivendo lá de 1952 a esta parte, pode testemunhar sobre a mudança social e cultural que o ginásio público daquela cidade produziu. Não cabe a mim dar esse depoimento pois correria o risco de ficar atingido, e talvez prejudicado, pela carga de emotividade que naturalmente o tema me transmite.
Nasci naquela cidade, de pequeníssimo número de famílias abonada, cujos os filhos puderam fazer na Bahia estudos acima do primário. Acredito tenham sido idênticas as circunstancias dominantes noutras cidades do nosso interior, mas falo em particular de Serrinha pelo conhecimento pleno que tenho de sua realidade passada e presente. Poderia citar um número elevado de conterrâneos meus, todos eles jovens de muita inteligência e de gosto pelos livros, que teriam conquistado altas situações profissionais no campo do Direito, da Medicina, da Economia, das Letras, da Engenharia, se houvessem oportunamente encontrado à mão ensino médio gratuito. Todos eles, ao contrário, cedo tiveram de deixar a terra natal, apenas com instrução primaria recebida, para encetar a penosa conquista de um lugar ao sol na vida pratica. Venceram, é certo, mas ao preço de um esforço muito maior do que aquele que despenderiam se tivesse contado com instrução de outros níveis.
Serrinha foi berço, por exemplo, de Joaquim Teófilo de Oliveira, Bráulio Franco, Joaquim Hortélio Filho. O Primeiro, simples aluno da professora Aurea Ribeiro Nogueira, fez bonita carreira na Administração Publica até o seu mais alto cargo burocrático: Contador Geral do Estado. Toda a complexa contabilidade publica a seu cargo era por ele manuscrita, com uma caligrafia que causava admiração. Hoje Joaquim Teófilo é nome do município de Teofilândia.
Joaquim Hortélio Filho, dotado também apenas do aprendizado elementar, cedo rumou para o Sudoeste pecuarista, onde prosperou e veio a eleger-se Deputado à Assembleia Legislativa de 1947.
Bráulio Franco, esse, nunca até hoje saiu de sua terra, mas nela tem realizado uma brilhante trajetória intelectual. Autodidata, escreve o nosso idioma com inspiração, bom humor e elegância, podendo figurar na lista, aliás pequena, dos autênticos cronistas brasileiros. Pouco depois de elaboradas as páginas deste capitulo, desaparecia o meu amigo Bráulio. Nosso último encontro foi num comício pró candidatura de Claudionor Ferreira Filho a prefeito de Serrinha.
O Ginásio deu aos jovens melhor preparo intelectual para uma atividade profissional de qualquer natureza, e isto em pouco tempo se concretizou, quando os vários bancos locais passaram a recrutar candidatos aos empregos que os seus concursos anunciavam. O Ginásio foi enfim a semente benfazeja de democratização da educação, a verdadeira força propulsora do desenvolvimento daquela comunidade.”
NR : No próximo dia 31, a Câmara de Vereadores de Serrinha, fará homenagem ao Colégio Estadual Rubem Nogueira, pelos seus 70 anos de existência – 1952/2022.
O professor Rubem Nogueira, faleceu em 25.01.2010, aos 96 anos.
Fonte: Rubem Nogueira – livro de sua autoria “O Homem e o Muro” (memórias políticas).
Fotos: Internet
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